Escrever sobre aquilo que se ama é muito difícil. Concluí um dia que nunca poderia escrever sobre a terra onde nasci por causa dessa proximidade: tudo o que dissesse viria inevitavelmente impregnado de paixão, dessa mundanal afeição própria das coisas vivas que ao relacionar-se se transformam, quase sempre sem o desperdício de terem de se explicar, dizendo-se. Mas se a razão prática me adverte que a possibilidade de conhecermos um objecto depende da nossa capacidade para nos distanciarmos dele, então obedecendo-lhe terei de me socorrer de uma outra razão, talvez estética, para poder falar daquilo que amo. E é por aí unicamente que seguirei, escusando-me portanto à ciência. É por isso que noto, sem existencialismo mas com tristeza, que o rio que corre pela minha aldeia, sendo mais belo para mim que o Tejo, está hoje muito mais sujo do que estava há quarenta anos, quando as mulheres então nele lavavam os lençóis de pano cru e outros trapos com recurso ao temível sabão fosfatado. O rio onde na infância eu pescava pequenos peixes e enguias está hoje praticamente morto. Morto talvez de ninguém o ver ou pensar nele, como eu ainda ainda hoje o vejo e o penso. Nele naveguei e nele naufraguei, sem temor da viagem nem receio da salmonela. Mas hoje parece que o rio da minha aldeia já não faz pensar em nada. E é isso que é triste. Pessoanamente triste. Até porque os rios de outras terras poluíram-se de gente e de fábricas que das suas margens se foram abeirando. Foram mortos mas a morte glorificou-os, tal como acontece com os bons soldados. Só que as margens do meu rio estão cada vez mais sós, olham uma para a outra e perguntam-se: para onde terão ido as crianças? Quem as terá levado daqui? E a resposta encontro-a nas casas vazias e abandonadas. Nos campos silenciosos e nas fábricas que não chegaram a ser ou que foram sendo aos pucos despovoadas de gente.
Em Cós sinto ainda o murmurar das monjas subindo pela calçada até ao celeiro. E ouço as palavras místicas de Dona Benta de Aguiar, sussurradas ao ouvido do Cardeal D. Henrique, prenunciando o desastre das tropas portuguesas em Alcácer-Quibi, ao comando de El-Rei D. Sebastião. E perco o sentido do tempo, como um nevoeiro que cristalizasse em memória o tempo das pedras que restam do dormitório das religiosas, e de todas as pedras que a ignorância dos homens tirou do seu lugar. E não consigo perceber como foi possível que a envolvente dessa pérola do património nacional que é o Mosteiro de Santa Maria de Cós, da ordem feminina de cister, chegasse ao actual estado de degradação. Como pode um monumento destes estar encerrado ao público durante a maior parte do ano? Sim, até os olhos das estátuas enbaciam e as pedras perdem a memória. Agora as corujas já não bebem no convento o azeite das lamparinas, e a chuva nos algerozes, nas longas noites de Inverno, é interrompida pelo barulho dos automóveis e das televisões. A minha aldeia nunca mais será a mesma, e isso é certo como é certa a morte para aqueles que vivem. Mas não há razão nenhuma para que Cós continue a morrer apenas porque alguns olhos cegos são incapazes de ver a sua beleza. Se um dia alguém der valor àquilo que alguns de nós desprezámos, não teremos que nos queixar. Pois é unicamente através do amor que as coisas belas podem ser possuídas.
Valdemar Rodrigues
Cós, 13 de Abril de 2007
Etiquetas: Aldeia de Cós, Artigos e entrevistas
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