Do Humanismo Cristão
Raquel Romão
Os tempos que correm estão difíceis para um cada vez maior número de pessoas, aqui e em muitos outros lugares do mundo, e tal como outrora começam a ouvir-se vozes que inquietas clamam por justiça, que denunciam a miséria humana, que falam de um crescimento assustador das desigualdades entre ricos e pobres. Impelidos pela realidade dos factos, alguns voltam a reclamar a urgência de transformar o mundo. Mas esquecem porém algo essencial: como vamos cuidar dos nossos irmãos mais necessitados? Como vamos entretanto prover às necessidades de famílias inteiras que terão de sobreviver sem emprego? Famílias cujos rendimentos não lhes permitirão ter acesso à saúde, à habitação, ao essencial enfim para uma vida humana condigna? Fazem-no porque tendem a ver na caridade cristã um freio do potencial revolucionário das sociedades. Como se a miséria de seres humanos fosse o tónico indispensável das revoluções. Esquecem também a história recente da Europa, marcada desde Oitocentos por constantes experiências políticas, de planeamento e de engenharia social, nas quais a participação da Igreja tem sido basicamente a de procurar tornar mais humanas as relações sociais, combatendo a cegueira ética. O que em muitos casos, como sabemos, infelizmente não conseguiu. Os tempos que correm estão difíceis, e a derrocada moral dos grandes paradigmas do progresso e da modernidade é hoje mais do que evidente. A inquietação é pois grande entre as hostes geométricas, que na agonia agitam de novo as velhas bandeiras do medo. Como se a história nada nos tivesse ensinado. Mais grave ainda: como se a história não tivesse sequer acontecido. Uns atrás de outros, capitulam na estante pensadores, paradigmas e gurus. E permeando o frenesi por novas roupagens, supostamente mais adequadas aos tempos que correm mas cada vez mais fugazes, cresce um vazio de sentido para a vida que muitos aflige. Jovens incluídos, que vêm cada vez menos perspectivas para o seu futuro. A cegueira ética, de início acidental, passa a ser condição necessária de sucesso nas sociedades ditas modernas. Tem razão quem vence, vence quem pode comprar e come quem cala. O justo é visto como tolo e sucumbe aos algozes. Acontecendo que hoje, estranha e muito perigosamente, a precaridade da vida humana aparece como condição suficiente para o crescimento económico. Esse crescimento que nunca quis dizer desenvolvimento, pois não é humanista, não tem ética e despreza profundsamente os pobres e os fracos. Perdem-se a ligação à Natureza e à Terra através do trabalho das mãos, o silêncio puro e contemplativo, a oração humilde, o estudo e o ensino do mistério de Deus que todavia persiste em potência em cada um de nós. Seria por isso bom que conseguíssemos compreender por exemplo o que falta hoje nas nossas escolas e na nossa sociedade em geral: uma razão para a vida, necessariamente complexa, que nos preencha esses imensos vazios deixados pela ciência dita moderna, algo que as ciências do Homem certamente agradeceriam. Seria bom que não olhássemos a história com tanto desprezo, com a arrogância de quem julga que os tempos passados não trazem já no seu seio as sementes dos tempos futuros. Seria bom por exemplo que entendêssemos por que razão devemos hoje zelar pelo homem inteiro, e não apenas por alguma das suas instrumentais valências. Como ainda hoje o fazem esses monges e monjas cisterciences espalhados um pouco por todo o mundo. Num mundo globalizado, perguntaríamos nós: como conseguem sobreviver hoje tais pessoas apegadas a um lugar? E como conseguem ainda assim prestar serviços assistenciais à comunidade? E ajudar quem nela mais precisa? Sim, a história ensina-nos que os monges brancos foram já um dia vítimas do seu isolamento e da sua descentralidade. Longe das cidades florescentes de negócios e mercadores, no recato dos seus vales tranquilos, junto às águas lentas, as abadias cistercienses terão perdido, algures no crepúsculo da Idade Média, o fulgor e a pujança de outrora. Então se um dia assim aconteceu, e hoje as cidades concentram muito mais negócios e mercadores do que então, porque razão ainda existem tantas abadias cistecienses, femininas e masculinas? E porque razão renascem elas actualmente a cada dia que passa? Estou em crer que a resposta é relativamente simples.
in Região de Cister, ed. de 3-1-08
in Região de Cister, ed. de 3-1-08
Etiquetas: Artigos e entrevistas
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