Historiadores Presumidos, ou da assunção da pirataria de Estado
ou da assunção da pirataria de Estado
Errare humanum est, sed in errore perseverare dementem
O Bazar das Monjas tem acompanhado com grande interesse as denúncias feitas pelo Prof. Gérard Leroux no jornal O Alcoa, a propósito da falta de rigor científico e da violação dos direitos de autor (propriedade intelectual alheia), acções nada dignificantes levadas a efeito por pessoas que tiveram ou têm actualmente grandes responsabilidades pela gestão do Mosteiro de Alcobaça, monumento classificado pela UNESCO como património da Humanidade e que a todos tanto orgulha. Os “Historiadores Presumidos” são neste caso o Dr. Rui Rasquilho e a Dra. Maria Augusta Trindade Ferreira, actual director e ex-directora do Mosteiro de Alcobaça, e a obra visada é o livro “Císter e a Europa. Santa María de Alcobaça, Alíança entre a espírítualídade e o trabalho manual”, recentemente editado pela ACD Editores (Lisboa) com o apoio da Câmara Municipal de Alcobaça, e que se encontra à venda nas livrarias pela módica quantia de 50 Euros. Os erros, as imprecisões históricas e a fraude denunciadas são, em nosso entender, tão graves que mereceriam de imediato uma de duas coisas: ou a reacção imediata dos autores procurando argumentar objectivamente em sua defesa, ou o reconhecimento do erro cometido por parte dos mesmos, promovendo desde logo os esforços necessários para a retirada de circulação do livro. Pois em causa está não apenas o rigor histórico, ou a falta dele, mas também a credibilidade daqueles que exercem funções públicas de grande relevo. Ora o que observámos com estranheza é que não aconteceu nem uma nem outra das coisas que seria natural que acontecessem, e para espanto nosso na última edição d'O Alcoa era suprimida a quarta parte da rubrica “Historiadores Presumidos” (sendo esta adiada para uma "próxima edição"). Para tornar ainda as coisas mais nebulosas, o Alcoa anunciava como novo colaborador do jornal o Dr. Rui Rasquilho, através de uma rúbrica quinzenal intitulada “Apontamentos Cistercienses”, na qual, para começar, este referia as traves mestras do seu entendimento da história e do processo histórico, reconhecendo haver porém “sempre ignorantes fanáticos que têm o maior prazer em manipular a história de acordo com as suas conveniências ocultas, às vezes até em nome de valores sagrados que nunca entenderam”. Nem uma palavra portanto em relação à verdade, ou falsidade, das acusações de que fora alvo em números anteriores do jornal por parte do Prof. Gérard Leroux, um reconhecido especialista europeu da Ordem de Cister, presumindo-se de uma das traves mestras apontadas pelo actual director do Mosteiro de Alcobaça, precisamente a primeira delas: “A imagem que guardamos do nosso passado comum e o volume de informação que vamos acumulando ao longo da vida condicionam o nosso entendimento do processo histórico”, que o entendimento do processo histórico possa com o tempo fazer com que deixemos de ver certos factos históricos e que tal incapacidade de ver seja não só possível mas até mesmo desejável. E o "facto histórico" aqui é que um director e uma ex-directora do Mosteiro de Alcobaça publicaram em co-autoria um livro, com a chancela da Câmara Municipal de Alcobaça, onde alegadamente abundam não só os erros históricos mas também as evidências da violação de direitos de autor, através do uso indevido de inúmeras fotografias e imagens sem qualquer referência às respectivas fontes.
Ora nós que nada de pessoal temos contra os autores do livro, e que com muito interesse fomos acompanhando os artigos do Prof. Gérard Leroux, achamos toda esta situação pouco digna e nada edificante para as várias entidades envolvidas: desde logo para a Igreja Paroquial do Santíssimo Sacramento, de Alcobaça, proprietária do jornal; para o Mosteiro de Alcobaça, gerido pelo Estado através do IGESPAR, e para a Câmara Municipal de Alcobaça, que teria aqui a responsabilidade de procurar desenvolver acções concretas junto dos autores e da editora no sentido de apurar a verdade dos factos e, se fosse caso disso, de promover a retirada do livro de circulação. Não fazer nada numa situação destas, e ainda por cima procurar louvar quem errou, é algo que despromove duplamente a cultura e incentiva o público à pirataria. Vindo de entidades públicas, o exemplo é pois, em nosso entender, de uma extrema gravidade. Com que moral poderá por exemplo o Estado, através da ASAE, continuar a recolher nas feiras os CDs e DVDs pirateados? Ou com que autoridade vamos dizer aos nossos filhos para não copiarem na escola pelos colegas da carteira do lado?
Porque somos amigos do Prof. Gérard Leroux, em quem reconhecemos não só a grande sabedoria mas igualmente a extrema cordialidade no trato humano, e que nos tem ajudado muito no trabalho de pesquisa que temos vindo a desenvolver em Cós, decidimos publicar aqui a quarta parte da sua rúbrica “Historiadores Presumidos”. Esperamos poder desta forma contribuir para o pleno esclarecimento desta lamentável estória. E, para o bem de Alcobaça, fazemos votos de que haja a dignidade suficiente para que os visados e patrocinadores deste triste “facto histórico” venham publicamente a assumir que erraram, retractando-se e desse modo mostrando, como devem, que respeitam os seus leitores. Isto a juntar, claro está, ao inevitável pedido público de desculpas ao Prof. Gérard Leroux. Se o não fizerem, deste ou de modo diverso mas objectivo para que bem se entenda, então é porque algo vai definitivamente mal neste nosso "reino da Dinamarca".
Ass: Valdemar Rodrigues e Raquel Romão
Historiadores presumidos (4)
por Gérard Leroux
Císter e a Europa. Santa María de Alcobaça, Alíança entre a espírítualídade e o trabalho manual / Rui Rasquilho e Maria Augusta T. Ferreira. — Lisboa : ACD Editores, 2007, 183 p., il. — 31 x 25 cm. (Publicação subsidiada pela Câmara Municipal de Alcobaça.) 50 euros.
Antes de prosseguir com o exame do «livro» (porei doravante a palavra «livro» entre aspas, porque, como já se viu, «aquilo» não é um livro, embora tenha aspecto de livro, mas uma autêntica burla), sob o seu aspecto «histórico», parece-me importante, necessário até, voltando à questão das fotografias roubadas de que está recheado, informar os leitores de quatro mensagens, entre muitas outras, que recebi nestas últimas semanas.
A primeira diz respeito à reprodução ilegal, publicada na pág. [31] do dito «livro», de uma iluminura muito famosa do grande pintor quatrocentista Jean Fouquet, iluminura essa que ilustra o Livre d’heures d’Etienne Chevalier, conservado no Museu Condé do Castelo de Chantilly, nos arredores de Paris, o maior museu de França depois do Louvre.
Esta iluminura representa São Bernardo ensinando um grupo de monges e foi inicialmente reproduzida (com a devida autorização) no livro que referi no meu penúltimo artigo: Saint Bernard & le monde cistercien (Paris, 1990 e 1992), trabalho colectivo dirigido por dois reconhecidos especialistas internacionais da história da Ordem de Cister: o Prof. Léon Pressouyre, da Sorbonne, e a Prof.a Terryl Nancy Kinder, historiadora da arquitectura medieval, que ensinou em universidades dos Estados Unidos, França e Canadá, e que dirige actualmente a revista de história Cîteaux, de que sou colaborador há mais de vinte anos.
Pois bem, acerca desta iluminura, copiada fraudulentamente pelos nossos presumidos «historiadores», recebi da directora da Biblioteca e arquivos do Museu Condé de Chantilly, a Sr.a Emmanuelle Toulet, a seguinte mensagem:
«Chantilly, 24 de Outubro de 2007
Monsieur,
Recebi a sua mensagem relativa à reprodução «pirata» das Heures d’Etienne Chevalier, que lhe agradeço. Evidentemente que nunca autorizei a reprodução desta iluminura. De resto, nunca é permitido reutilizar uma fotografia já publicada num livro ou na Internet.
Muito cordialmente.
Emmanuelle Toulet
Conservateur en chef de la bibliothèque et des archives
Château de Chantilly
60631 CHANTILLY»
Esta mensagem é perfeitamente clara: nunca foi dada autorização a Rui Rasquilho e a Maria Augusta Trindade Ferreira (nem ao filho desta) para copiar, de um livro que nunca mencionam, a dita iluminura de São Bernardo. A sua utilização fraudulenta é pois um roubo e, em termos legais, um crime, isto é, um acto, ou conjunto de actos, que, nas sociedades civilizadas, não pode deixar de suscitar o repúdio das pessoas decentes, respeitosas da ética (sétimo Mandamento de Deus: «Não furtarás»).
A segunda mensagem veio da própria Prof.a Terryl N. Kinder, co-directora, como já disse, do livro «aproveitado» pelos nossos presumidos «historiadores». Eis a sua tradução:
«Pontigny, 24 de Outubro de 2007
Monsieur,
Agradeço a sua mensagem e fiquei preocupada com a notícia que me deu acerca desta publicação feita em Portugal. Não dei autorização a ninguém para reproduzir fotografias minhas ou fotografias do livro publicado em 1990. Infelizmente, aquilo que documentou tão bem torna-se cada vez mais frequente. As regras e as leis são cada vez mais severas, mas a caça aos «bandidos» custa caro, em tempo e em dinheiro, e eles sabem-no. […] Compartilho da sua indignação perante esta situação ultrajante.
Com as minhas saudações respeitosas,
Terryl Kinder
Prof.a Terryl N. Kinder
Rédactrice en chef / Editor-in-chief
Cîteaux : Commentarii cistercienses
17, rue Rabé
89230 PONTIGNY»
Nesta carta, o leitor terá reparado no uso, pela Prof.a Terryl Kinder, da expressão «situação ultrajante», que traduz justamente a «indignação» de uma pessoa decente, ela própria vítima de abuso, face à falta de ética dos presunçosos autores do «livro» em análise.
A terceira mensagem que acho necessário publicar aqui diz respeito à fotografia reproduzida na pág. 71 do «livro» (copiada da pág. 184 da obra do Prof. Pressouyre e da Prof.a Kinder), e foi-me enviada por Dom Georges Guinand, abade do Mosteiro cisterciense de Aiguebelle:
«Abadia de Aiguebelle, 22 de Outubro de 2007
Monsieur Gérard Leroux,
Obrigado por me informar desta maneira. Com efeito, nunca autorizei a reprodução da fotografia que mostra um religioso de Aiguebelle a trabalhar. Tenha a certeza de que nós rezamos por si.
P. Georges
Dom Georges Guinand
Abbé d’Aiguebelle
Abbaye Notre-Dame d’Aiguebelle
26230 MONTJOYER»
A quarta mensagem, que me é também muito grato reproduzir, foi-me dirigida pelo abade do Mosteiro cisterciense de Port-du-Salut, mosteiro do qual o Padre Maur Cocheril (também vergonhosamente «aproveitado» pelos autores do «livro» na pág. 123) era monge professo. Diz o seguinte:
«Abadia de Port-du-Salut, 8 de Novembro de 2007
Monsieur Leroux,
Agradeço a sua carta e a revelação da piratagem que menciona.
Este género de actuação não é raro e, quando vivia em África com os Dogões, no Sudão, quantas vezes não vi antropólogos vir pilhar os trabalhos de etnologia dos missionários e aproveitá-los noutras línguas, chegando por vezes a atribuir-se todo o seu trabalho…
Tratando-se do Padre Cocheril, das fotografias e dos desenhos originais do mosteiro de Port-du-Salut publicados naquele livro [nas pág. 41, [122] e 123] : Nunca demos qualquer permissão seja a quem for para reproduzir seja o que for.
Agradeço-lhe vivamente todo o cuidado tomado — e as preocupações que isto lhe causa — em relação à obra dos Cistercienses, a fim de conservar a sua mensagem em toda a sua integridade.
Asseguro-o dos meus sentimentos mais carinhosos e da minha oração.
Fr. Joseph, abade de Port-du-Salut
Dom Joseph Deschamps
Abbé de Port-du-Salut
Abbaye N.-D. de Port-du-Salut
53260 ENTRAMMES»
Julgo que estas quatro eloquentes mensagens, que confirmam plenamente a impostura de Rui Rasquilho e de Maria Augusta Trindade Ferreira, autores, juntamente com o seu compadre fotógrafo, da burla que resolvi denunciar à opinião pública na presente série de artigos, não precisam de mais comentários.
(Continua.)
Etiquetas: Artigos e entrevistas, Divulgação
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