sábado, fevereiro 14, 2009

Evocação de Joaquim Elias Jorge

Fonte da imagem: aqui.

Evocar a figura de Joaquim Elias Jorge (10 de Abril de 1949 – 13 de Fevereiro de 2008) é um acto simultaneamente fácil e difícil: Se é com prazer – e com a consequente facilidade – que se fala de um Amigo, é também com enorme incomodidade que verificamos que as palavras ficam sempre muito àquem daquilo que foi a sua postura perante a vida, em suma, daquilo que foi o seu exemplo.

No início de 1971, encontrava-me na bonita cidade de Nampula, em Moçambique, pode dizer-se que, «como peixe na água». Ao cabo de dois anos de comissão militar, o serviço era agora menos apertado, pois estava a passá-lo gradualmente para o meu substituto, que tinha acabado de chegar e já se encontrava em funções. Por isso, já podia terminar tranquilamente o meu curso de pilotagem que iniciara uns meses antes no Aeroclube de Nampula; mesmo assim, ainda havia tempo para passear por toda aquela inesquecível zona, deslumbrante e estranha na sua riqueza paisagística, acolhedora na afabilidade das suas gentes.

Não tinha pressa em regressar. Nampula tinha-se tornado numa cidade muito movimentada. Sede do comando militar e do seu quartel-general, aqui afluíam milhares de militares de todas as proveniências e para todos os destinos. Nesse numeroso conjunto, um «velho» amigo e condiscípulo recém-chegado a Moçambique deu-me o privilégio de conhecer o Joaquim Elias Jorge com quem viajara, no paquete «Infante D. Henrique» de Lisboa para Lourenço Marques, hoje Maputo, e em avião «Boeing 737» das Linhas Aéreas Locais (DETA), desta cidade para Nampula.

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Uma das primeiras características que observei no Joaquim Elias Jorge foi a sua enorme curiosidade por tudo o que o cercava. A sua paixão pelos aviões decorreu do «baptismo de voo», a tal viagem em «Boeing 737», até Nampula, com escala pela Beira, ao lado do citado «velho» amigo, o Vaz Palma, já nessa época um piloto experimentado e um magnífico comunicador. Mas a vivacidade do espírito de Elias Jorge não se ficou por aí.

Chegado a Moçambique, cedo se apercebeu de que tudo aquilo que a sua perspicaz retina captava tinha de ser registado. Dedica-se então, com todo o entusiasmo, à fotografia, onde denota um apurado sentido estético. O rigor formal preocupa-o, mas sempre com a mente naquilo que mostraria ao longo de toda a sua vida: poder dar aos outros algo de si próprio. Que significado podia ter a fotografia para uma mente tão generosa se não pudesse partilhar aquilo que tanto o sensibilizava? Com efeito, ao mesmo tempo que reunia um valioso espólio fotográfico, sonhava com a possibilidade de poder expô-lo, após o seu regresso de Moçambique. Mas como o tempo passado no meio de amigos corre, depressa chegou o mês de Maio que me trouxe de volta, mal pensava eu que, em Dezembro de 1972, iria iniciar outra comissão, novamente na cidade de onde saíra: Nampula.

A satisfação era grande por ir reencontrar alguns dos amigos que deixara um ano e meio antes. O Elias Jorge mantinha a curiosidade que já evidenciara pela terceira dimensão, mas agora tudo era mais consistente, por via das demoradas conversas com o Vaz Palma sobre assuntos aeronáuticos, das muitas horas passadas no Aeroclube de Nampula e das «voadelas» nos seus aviões. Dentro das poucas horas de merecido descanso, a fotografia continuava a apaixoná-lo. Como se as 24 horas do dia fossem elásticas, ainda se deixou seduzir por outra actividade, o tiro desportivo, modalidade que praticou com resultados assinaláveis. Sem desprimor para outras modalidades desportivas, no tiro cada praticante compete consigo próprio, longe dos aplausos dos estádios cheios. É um desporto para pessoas discretas, como ele sabia ser.

Esta minha segunda ida para Moçambique despertou-me o interesse pelo coleccionismo de conchas marinhas, motivado pela proximidade de um litoral muito rico e pelo exemplo de um familiar que no mesmo local, uns anos antes, reunira um importante e diversificado acervo. Este meu interesse contagiou o Elias Jorge. Estou a ver a sua satisfação durante as nossas «expedições» à ilha de Moçambique. Agora não era só o património arquitectónico e o contacto com as pessoas aquilo que estava no seu pensamento: era também o desbravar de um mundo subaquático muito diferente daquele que observara nas nossas águas temperadas. Não esqueço que a Cypraea vitellus que tenho na minha colecção foi apanhada por ele. E não esqueço sobretudo o genuíno contentamento que manifestou ao saber que ainda não tinha aquela espécie.

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Entretanto, o Elias Jorge completa os seus dois anos de comissão, deixa Moçambique deixando também um sentimento de saudade nos muitos amigos que, com facilidade, reunia à sua volta. Nas infindáveis conversas que mantínhamos estava sempre presente a partilha de experiências, onde o Elias Jorge mostrava a sua disponibilidade para aprender sobre os temas em que não era tão versado, como o entusiasmo para ensinar sobre os assuntos em que os seus conhecimentos eram profundos. Estou a lembrar-me, por exemplo, de o escutarmos com agrado e atenção, sobre as técnicas de enxertia entre muitos outros assuntos ligados à agricultura.

Os momentos de convívio que mantivemos após o meu regresso, embora espaçados pelos condicionamentos que a vida nos impõe, foram sempre momentos vividos com intensidade, quer na sua casa, quer na minha. A boa disposição nunca faltou, mesmo se falássemos de assuntos que nos preocupavam: a serenidade e resignação com que aceitava todas as vicissitudes da vida eram surpreendentes; a preocupação com o bem-estar dos outros, uma constante.

Ao pé do Joaquim Elias Jorge, ninguém se podia sentir infeliz. Nunca é demais sublinhar, por isso, o seu lema de vida: «FAZEI-ME O FAVOR DE SERDES FELIZES».

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Uma vez, em sua casa, olhou para os meus netos e pensou naquilo que, pude adivinhar, lhe ia na mente: falta, aos miúdos da cidade, uma percepção mais nítida da natureza. Disse-me então: – leva lá estas duas favas, arranja um vaso, põe cada um a semear e a cuidar da sua planta e convida-os a acompanhar o respectivo nascimento e desenvolvimento. Assim foi e a partir daí, todos os anos cumprimos o «ritual» que começa em Novembro e termina em Abril. O Guilherme, dizia-me, dentro do espírito infantil próprio dos seus três anos: – avô, a flor da fava parece uma zebra. Que observação! Realmente, no exuberante mundo da Natureza, a flor da fava, tal como a zebra, são das raras entidades que se mostram na sua singeleza do preto-e-branco. Assim, uma proposta carregada de Pedagogia, deu lugar a uma atenta reflexão. Não nos esqueçamos de que, antes de cumprir o serviço militar, o Elias Jorge fora professor de Trabalhos Oficinais na Escola Industrial e Comercial de Estremoz, cidade alentejana que também o apaixonou. Mostrava-o claramente pela vivacidade com que recordava essa página do volumoso livro que foi a sua vida.

O desaparecimento físico do Joaquim Elias Jorge constituiu uma perda irreparável para os familiares e também para os inúmeros amigos que deixou. Todavia, para mim que acredito, como ele acreditava, numa vida para além da vida, a dor é atenuada pela certeza de que o seu espírito estará em bom lugar!

José Manuel Pedroso da Silva

[zedaota@gmail.com]

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