O Total Apoio e um Voto de Louvor do Bazar das Monjas ao magnífico trabalho de esclarecimento de Paulo Bernardino
Porque nos identificamos plenamente com o espírito do texto seguinte, no qual Paulo Bernardino delineia muito fundamentadamente uma visão para o futuro do Mosteiro de Alcobaça, reproduzimo-lo aqui na íntegra. Desejamos que o Mosteiro-irmão de Santa Maria de Cós, não fique esquecido e que a recuperação da sua envolvente histórica possa seguir uma filosofia semelhante àquela que Paulo Bernardino defende, e muito bem, para o Mosteiro de Alcobaça. Há muito trabalho a fazer, lá como aqui em Cós, e por isso também fazemos Votos para que não haja muitas mais delongas e penosos interregnos, que a ninguiém dignificam e ao Estado (todos nós) só empobrecem. Quanto ao sonho, não esqueçamos as palavras sábias de Rómulo de Carvalho (António Gedeão): afinal é (ou não) ele que comanda a vida?
O Mosteiro de Alcobaça, de 1834 a 2008
por Paulo Bernardino
A extinção das Ordens Religiosas, em 1834, colocou imediatamente o Mosteiro de Alcobaça sob a tutela jurídica do Estado, o que determinou a afectação dos espaços desocupados para instalação de diversos organismos de tutela estatal, tal como aconteceu com muito outros mosteiros em todo o país.
Em 1836 iniciou-se a ocupação militar do edifício, com a afectação de parte das instalações ao Regimento de Artilharia 10. Em 1837, o Ministério da Fazenda e a Junta do Crédito Público, através, respectivamente, das Portarias de 04 de Agosto e de 29 de Agosto, afectam à “Câmara Municipal do concelho de Alcobaça (uma) parte do edifício e suas pertenças do extinto mosteiro de S. Bernardo daquela vila, de que se lhe deu posse em 10 de Fevereiro de 1838, para nela se estabelecerem o Tribunal Judicial, paços do Concelho, Aulas de Ensino primário e secundário, Administração do Concelho e Cadeia Pública.”
A instituição militar tutelou os espaços que lhe foram afectados até 1928, altura em que o Decreto nº 15:146, de 9 de Março, estabeleceu um novo protocolo de cedência para instalação definitiva do Asilo de Mendicidade de Lisboa no Mosteiro de Alcobaça. Em 1973, o Decreto-lei nº 1/73, de 3 de Janeiro, criou o Lar Residencial de Alcobaça, extinguindo o Asilo de Mendicidade. A nova instituição permaneceu instalada no Mosteiro de Alcobaça até 2002, data da sua transferência definitiva para o novo edifício de Évora de Alcobaça. Em Abril do mesmo ano, um Acordo assinado entre o Ministério da Cultura e o Ministério do Trabalho e da Solidariedade celebrava a futura afectação definitiva dos espaços ao Mosteiro de Alcobaça/IPPAR (Instituto Português do Património Arquitectónico), integrando-os definitivamente no Programa de Reabilitação dos Conjuntos Monásticos.
As entidades identificadas nos parágrafos supra ocuparam a totalidade do conjunto monástico até 1928, data em que a Administração Central iniciou um amplo programa de obras de conservação e reabilitação do património identitário nacional, programa que, no Mosteiro de Alcobaça, levaria a uma intervenção profunda visando a restituição do núcleo medieval à traça original. A sua boa execução pressupõe espaços libertos, o que determina o arranque de um programa paralelo de resgate dos direitos de propriedade a favor do Estado. Este seria finalmente concluído no final da década de 1990, com a aquisição pelo IPPAR dos prédios rústicos que permitiram fechar a Cerca nos limites actuais, definidos, a nascente, pelo Rio Alcoa, e a sul, pela Levada e pelos muros de delimitação de propriedade.
Aquando do lançamento do programa de resgate, na década de 1930, os Claustros do Cardeal e do Rachadoiro ficam excluídos, sendo progressivamente ocupados pelo Asilo de Mendicidade de Lisboa, em resultado, precisamente, da obrigatoriedade de desocupação do Dormitório medieval no quadro do Programa de conservação e restauro a cargo da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN). Subsequentemente, os dois claustros vão ser objecto de um segundo programa de transformação, para adaptação dos espaços às novas realidades funcionais. O primeiro, que fora da responsabilidade da instituição militar, visara fundamentalmente a adaptação dos pisos térreos às especificidades das armas instaladas: artilharia e cavalaria.
Desta história de ocupações e transformações, o que importa verdadeiramente ressalvar é que, mesmo com as obras de adaptação para adequação às missões das novas entidades que nele se foram sucedendo, o mosteiro que chegou até nós é um edifício que, arquitectonicamente, não perdeu a “memória” da sua existência como espaço conventual, antes a conserva, no que ela tem de fundamentalmente identificador.
Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça
Reabilitação e Revitalização do Conjunto Monástico
“Les biens du patrimoine mondial peuvent accueillir différentes utilisations, présentes ou futures, qui soient écologiquement et culturellement durables. L’Etat partie et ses partenaires doivent s’assurer qu’une telle utilisation durable n’a pas d’effet négatif sur la valeur universelle exceptionnelle, l’intégrité et/ou l’authenticité du bien. En outre, toute utilisation doit être écologiquement et culturellement durable. Pour certains biens, l’utilisation humaine n’est pas appropriée.” [1]
Pensar um Programa de Reabilitação para o Mosteiro de Alcobaça implica necessariamente pensar a sua utilização no quadro de um programa de desenvolvimento regional no qual aquele seja parte activa, no presente, mas, sobretudo, em termos de desenvolvimento de longo prazo. Pensar esta opção implica obrigatoriamente ter bem presente que o Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça não é o núcleo medieval, mas a totalidade do conjunto abacial, incluindo a cerca.
Esquecer que o Mosteiro é este “todo”, alienando, como está previsto, a fins exclusivamente privados o equivalente a dois terços do monumento, é cometer um grave erro científico e de política cultural, evidenciando uma perspectiva fragmentada da compreensão de um processo histórico de longa duração, o qual é determinante naquele que é o seu valor histórico e cultural, o seu valor de “memória”. É também um erro estratégico em termos da sua rentabilidade económica futura no sentido em que a sua capacidade de atracção “turístico-cultural” fica substancialmente diminuída com esta “subtracção” ao “valor de uso” do monumento da memória material dos três últimos séculos da sua história e, por via desta, da fruição e da compreensão global e integrada das mais importantes marcas da identidade cisterciense: a auto-suficiência construída naquela relação única com o ambiente através da hidráulica.
De igual modo, é anular, ab initio, a possibilidade de devolver o mosteiro à sua função originária, tornada possível com a saída do Lar Residencial de Alcobaça e com a definitiva transferência para o Ministério da Cultura da área que lhe estava afecta - Claustros do Cardeal e da Biblioteca e Cerca a nascente da Levadinha.
A revitalização deste património pela via da instalação de comunidades monásticas constitui hoje o percurso natural e preferencial de reabilitação e salvaguarda em toda a Europa, com maior desvantagem do que em Alcobaça, na medida em que este é um dos raros mosteiros europeus que chegou até aos nossos dias “intacto” na forma e na sua monumentalidade. Com efeito, se na Europa esta opção implica frequentemente a construção de obra nova ou de grandes obras de reconstrução e reabilitação arquitectónica do existente, tal não é necessário em Santa Maria de Alcobaça, onde os corpos seis e setecentista, construídos precisamente para fazer face à modernização da Ordem, se mantêm praticamente inalterados, permitindo a recuperação de todas as funcionalidades fundamentais de carácter interno, incluindo a articulação espacial com o conjunto medieval e com a Igreja, imprescindíveis à celebração do Oficio Divino, à Liturgia das Horas.
Como nos lembra Bernard PEUGNIEZ, na Introdução ao seu Routier Cistercien, o turista cisterciense é um turista especial, uma espécie de peregrino moderno, que procura na interioridade do claustrum o que nenhum outro monumento lhe pode oferecer. Uma interioridade de valor espiritual incalculável se o mosteiro for “uma comunidade viva” :
« La visite d’une abbaye cistercienne n’est pas la visite d’un lieu comme les autres. Si le touriste, ce pèlerin moderne, s’en tient à l’extérieur de son architecture, il risque fort d’être déçu ; (…) La plus mauvaise solution est le passage « en coup de vent », juste le temps d’une prise de vue ou l’achat d’une carte postale. Quand il est possible, l’idéal est de séjourner à l’abbaye, ou, tout au moins, y demeurer quelques heures ; alors il convient de laisser parler les pierres, de les écouter, de tenter de saisir leur beauté et de les comprendre, de comprendre aussi ceux qui les ont taillés et assemblées.
(…)Il y a (…) un public cistercien. Puisse ce public qui franchit de plus en plus nombreux la porte de ces lieux, trouver un accueil digne d’une abbaye, entendre un langage qui parle au cœur (…) des visiteurs qui exigent d’être bien, l’espace d’une pause dans leur vie pour une expérience qui doit les attirer et surtout les « fidéliser » à revenir quand le besoin s’en fait sentir. (…) Quand ce public passera la porte de sortie, ce que l’importera surtout (c’est) le message que l’abbaye lui aura transmis (…) qu’il comprenne, à partir de ce qu’il voit, des choses qu’il ne voit pas : le silence, le dépouillement intérieur, la vie communautaire, la durée dans le temps, la sécurité, la solidité, la régularité, la rigueur ; la paix, la douceur, la fraîcheur, l’humilité, la beauté, la perfection, le mystère… »
O Mosteiro de Alcobaça perdeu os seus últimos monges em 1833. Até há muito pouco tempo, não julgávamos que o seu regresso fosse possível: ao mosteiro medieval era impraticável; os claustros seis e setecentistas estavam ocupados com o Lar Residencial de Alcobaça e, embora a sua saída fosse um facto a curto prazo, desconhecia-se o que estava por baixo da sua “pele”. Afortunadamente, o que lá está é quase tudo. E este quase tudo, incluindo a preciosa Cerca, permite que o mosteiro volte a ser um “mosteiro ” sem deixar de ser aquilo que agora é. Podendo ser muito mais.
A Valorização económica do Património
Todos os estudos promovidos pela Autarquia ou pela Administração Central referem o Mosteiro de Alcobaça como peça estratégica de desenvolvimento regional, assumido como um potencial competitivo, um gerador de sinergias, um organizador do território [2]. Dimensão estratégica cuja concretização tem implícito um elevado investimento, nem sempre fácil de entender pelos cidadãos.
A valorização económica do património cultural é, actualmente, uma prática comum, pretendendo-se chegar a conclusões que orientem as opções estratégicas em termos de sustentabilidade do valor de uso atribuído aos monumentos e da reprodutividade do investimento, considerados os seus efeitos sobre:
1) o seu valor-de-não-uso [3], entendido como o conjunto de valores que lhe são atribuídos por aqueles que os não visitam directamente e que visam traduzir a sua ligação à existência de determinado património e a vontade de o transmitir às gerações futuras;
2) a sustentabilidade das opções assentes na compatibilidade de usos com o valor cultural intrínseco, considerada a irreversibilidade das soluções e/ou a decorrente perda de valor presente e futuro;
3) a capacidade de atracção turística, entendida esta como geradora de reprodução de investimento;
4) a disposição dos turistas para pagar ou para aceitar, entendendo-se esta última como aceitar ou a privação da prestação de um determinado serviço que se venha a revelar incompatível com a salvaguarda (e/ou) da identidade do monumento ou a privação da identidade do monumento em detrimento do interesse económico da exploração turística.
Por ser evidentemente relevante, importa salientar que, quando colocados perante a opção “sacrifício” do valor-de-não-uso, os turistas optam claramente pelo não retorno para uma segunda visita. Com a agravante do factor “passa palavra” a repercutir-se em opções de potenciais turistas terceiros.
No estudo encomendado pela autarquia à SAER e dado à estampa em 2004, lê-se na página 47, que “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, mas não desaparece a necessidade de projectos configurantes, que sejam produtores de sentido e de ordem, de viabilidade e de sustentabilidade das actividades. Não é possível retomar a existência, a organização e as funções que as ordens religiosas tiveram em Portugal e na Europa, mas continua a ser necessário responder à mesma necessidade de configuração a que, na sua época histórica, estas instituições de base espiritual souberam responder. Neste sentido, a mensagem de Alcobaça é mais do que uma curiosidade incidental, ela tem um valor actual que, se trabalhado com a ambição adequada, poderá ser um importante estímulo de modernização.”
Já o QREN-PROGRAMA OPERACIONAL DO CENTRO 2007-2013 [4], que identifica Alcobaça como integrando o sub-sistema urbano embrionário do Oeste, embora de forma não tão explícita porque não é esse o seu objectivo, deixa clara a importância dos eixos “Património natural e paisagístico” e “Património histórico e arquitectónico e identidade cultural” como fundamentais para os dois factores estruturantes essenciais da região: “ incluindo um melhor acesso às tecnologias de informação e comunicação (...) e uma melhor oferta de serviços às populações (cultura, desporto, lazer, comércio, etc.); e consolidar e qualificar os sistemas urbanos territoriais, dotando-os de novas funções urbanas,promover a competitividade das cidades através da requalificação urbana e da criação de novas actividades do terciário superior, designadamente nos domínios relacionados com as identidades diferenciadas e com a especialização produtiva dos territórios por elas polarizados.”
No caso do Mosteiro de Alcobaça, a necessidade de uma ponderação séria e pública sobre os efeitos custo-benefício a longo prazo de opções ditadas por uma má conjuntura é, neste contexto, um dever institucional irrevogável e inalienável. Um menor custo financeiro agora pode revelar-se um estrondoso “mau negócio” e uma perda irreparável para o património cultural português, um desprestígio internacional imenso para um país que tem o privilégio de possuir “intacto” um dos maiores e mais belos mosteiros cistercienses da Europa, uma peça chave na construção da memória material da sua construção como Nação independente no contexto do processo de construção dessa mesma Europa.
A reabilitação como equipamento público e a opção Hotel de Charme
1.Os custos da reabilitação como equipamento público
O primeiro e mais grave problema com que nos deparamos quando pensamos num programa de conservação, salvaguarda e valorização do Mosteiro de Alcobaça é o da sua dimensão e, correlativamente, os enormes custos que a execução daquele programa e a manutenção continuada futura do conjunto monumental representam para o erário público. O segundo problema, que só pode equacionar-se em simultâneo com o primeiro, é o que respeita ao carácter da intervenção, considerados os fins da mesma:
a) conservação e restauro do existente, no contexto de um projecto de reabilitação arquitectónica integral, em resposta a um projecto de elaboradas soluções programáticas, compartimentadas e exigindo complexas infra-estruturas técnicas;
b) um programa de conservação e restauro do existente, assente numa proposta que compatibilize a obrigatória opção programática institucional e nacional, de “exploração” do “valor de memória” do monumento, com um programa de reabilitação minimalista nas opções e nas soluções técnicas a instalar, orientadas para a infra-estruturação segundo um modelo tipo “open space”, que concilia os pré-requisitos de salvaguarda do existente, institucionalmente assegurados, com alguma liberdade nas opções de reutilização a contratualizar com entidades terceiras, públicas ou privadas [5].
Porque a questão dos custos tem, presentemente, um enorme significado, a segunda opção é aquela que nos parece claramente a mais adequada, por duas ordens de razões:
1.a) porque permite a definição de um ambicioso programa institucional para o “mosteiro de Alcobaça” em articulação e complementaridade com um programa de usos a protocolar com outros serviços públicos, entidades privadas ou em parcerias público-privadas, suficientemente aberto e criativo, que não compromete nem a arquitectura do monumento nem os investimentos a realizar com soluções de utilização que se venham eventualmente a revelar casos de insucesso, permitindo a adaptação a novos projectos de reutilização;
b) e permite a partilha de investimento, com a Administração Central e demais parceiros institucionais a assumir os custos que decorrem da que é sua obrigação legal e de infra-estrutura geral, e as demais entidades, mediante protocolos de instalação, a assumir custos finais de obra, equipamento e manutenção.
2. porque se apresenta, em nossa modesta opinião, como a alternativa mobilizadora do interesse de entidades terceiras a integrarem um projecto de reabilitação do Mosteiro de Alcobaça que o salvaguarda na esfera colectiva e universal do “valor de memória”, com o qual se identifiquem e de cuja definição sejam parte constituinte.
É neste modelo que a instalação de uma comunidade monástica se apresenta como uma inestimável mais-valia no projecto de revitalização e rentabilização económica do Mosteiro de Alcobaça, quer pelo obrigatório envolvimento prático na concepção e execução do projecto de “reabilitação arquitectónica e funcional”, quer pelo papel futuro na captação de sinergias associadas ao desenvolvimento de projectos na área da produção de “Saber e Conhecimento” monásticos, quer pelo contributo quase exclusivo ao nível da reabilitação e manutenção da CERCA como espaço verde de usos múltiplos – veja-se o exemplo paradigmático do Museu de Serralves, que nem sequer tem os meios que passariam a ser os do Mosteiro de Alcobaça.
Finalmente, pela introdução no projecto daquela dimensão religiosa-espiritual única, que identifica o turista-peregrino cisterciense e que, todos os estudos de projecção estratégica para Alcobaça insistem dever ser a “MARCA” do Mosteiro de Santa Maria, no eixo Alcobaça-Fátima-Tomar.
2. Os custos da reabilitação como equipamento privado: o Hotel de Charme
A eventual construção de um hotel de charme no Mosteiro de Alcobaça suscita considerações várias. Assim:
1. Em primeiro lugar, com carácter prioritário e obrigatório, são as considerações próprias de qualquer processo de avaliação de impacte de obra em património classificado. Se estas são obrigatórias e mandatárias para os particulares, como não considerá-las mandatárias para o Estado?
O Mosteiro de Alcobaça é Monumento Nacional (classificado pelo Decreto de 10.01.1907) e Património Mundial (classificado pela UNESCO em 15.12.1989). Está, por lei e instrumento jurídico próprio e obrigatório, protegido por uma ZEP-Zona Especial de Protecção (Diário do Governo, 2.ª Série, n.º 190 de 16.08.1957), que inclui a também obrigatória Área Non Ædificandi. Qualquer obra que os particulares pretendam executar nas suas propriedades, desde que situadas nos limites da ZEP, está obrigatoriamente condicionada a parecer e autorização prévia do Ministério da Cultura, competências que este, em Alcobaça, exerce sem parcimónia e mesmo algum exagero. É assim lícito aceitar que o mesmo MC seja o promotor da alienação de dois terços do monumento para a construção de um equipamento de utilização excepcionalmente elitista e restritiva e cuja construção obedece a parâmetros tais que implica a destruição irreversível da quase totalidade das áreas que lhe serão afectadas, incluindo a área construída?
É aceitável que, por este processo, quiçá com o argumento de que apenas o núcleo medieval se encontra classificado, seja a própria entidade que tem a responsabilidade de “assurer que la valeur universelle exceptionnelle, les conditions d’intégrité et/ou d’authenticité définies lors de l’inscription soient maintenues ou améliorées à l’avenir” [6] venha a ser a promotora da “destruição” dessa mesma identidade intrínseca [7], enquanto (i) “uma obra-prima do génio criador humano e (iv) exemplo excepcional de um tipo de construção ou de conjunto arquitectónico ou tecnológico ou de paisagem ilustrando um ou vários períodos significativos da história humana.” [8], sendo certo que a Abadia Cisterciense de Alcobaça é, rigorosamente, tudo isto, fazendo, por isso, “partie des biens inestimables et irremplaçables non seulement de chaque nation mais de l'humanité tout entière” [9]
Não é a Abadia cisterciense de Santa Maria de Alcobaça a totalidade do conjunto que Frei Manoel dos Santos magnificamente nos identifica na sua “Descrição do Real Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça”, escrita no primeiro quartel de 1700, incluindo a Biblioteca, então ainda inexistente?
2. A segunda respeita à viabilidade futura do projecto “mosteiro” enquanto pólo de atracção turística, seguramente comprometida pela “subtracção” à fruição pública de dois terços da Abadia, incluindo da Cerca.
A “construção” de um equipamento de tipo “hotel de charme” no “seio” do Mosteiro de Alcobaça implicará necessariamente [10], se não a contratualização de condições excepcionais de uso dos espaços “monásticos medievais” para oferta de toda uma série de actividades que só as abadias podem oferecer a uma clientela de gama alta, pelo menos a afectação de parte significativa das potencialidades de uso da mesma à realização de actividades que funcionem como elemento de atracção dessa mesma clientela. O que compromete igualmente de forma significativa qualquer programação cultural da entidade “mosteiro” que não tenha este elemento em consideração, a par da “rentabilidade” do espaço “sobrante”, tendencialmente reservado à satisfação das necessidades de lazer de clientes que “pagam muito bem” para receber muito e muito bom.
Aos outros, será exigido pagar mais para poderem usufruir do monumento. Alguns, manterão intacta a sua “disposição para pagar e aceitar”; outros, talvez a maior parte, como a prática em contextos similares demonstrou, vai simplesmente deixar de vir. Incluindo, seguramente, os Alcobacenses.
3. A Cerca é parte integrante do valor de memória do monumento. A construção de equipamentos destinados à actividade de lazer de luxo nos três quartos da Cerca projectados para afectação ao hotel de charme, anula os fins que serviram de justificação à sua aquisição pelo Estado e impede a sua reabilitação e restituição patrimonial integrada no Programa global de Reabilitação, Salvaguarda e Valorização do Mosteiro de Alcobaça.
É nestes três quartos da Cerca que o Mosteiro de Alcobaça materializa a sua relação de interdependência com o Rio Alcoa, neles se localizando as mais importantes estruturas de um Sistema Hidráulico prévio ao próprio mosteiro, de cuja identidade é componente de valor inestimável e insubstituível. A sua afectação a fins exclusivamente privados compromete, como já referimos, a fruição pública e universal do conjunto monástico perspectivada em termos da compreensão global e integrada daquela que é uma das mais importantes marcas da identidade cisterciense: a auto-suficiência construída naquela relação única com o ambiente através da hidráulica.
É nestes três quartos da Cerca, mais precisamente no quarto localizado entre a Conduta de água potável e a Levada, numa extensão ainda não totalmente conhecida, que se localiza a “necrópole dos monges”, cuja extraordinária relevância científica e cultural o Estado tem o dever institucional de proteger e salvaguardar para efeitos de investigação futura.
A afectação de três quartos da Cerca do Mosteiro à construção de equipamentos de lazer de um empreendimento hoteleiro de luxo priva os cidadãos de Alcobaça e os visitantes do Mosteiro, aqueles mesmo que se pretende atrair, da fruição dessa mesma Cerca. O que contraria todas as projecções estratégicas e todas as avaliações de rentabilização económica dos projectos de valorização do património cultural, que insistem cada vez mais na importância da componente ambiental como factor de atracção turística e de valorização do território. Factor por demais evidente quando falamos de uma Abadia cisterciense.
4. Deste somatório, é nossa convicção que a “rentabilidade económica” do projecto “Mosteiro”, assumido como peça estratégica de desenvolvimento regional, como um potencial competitivo, um gerador de sinergias, um organizador do território, fica inviabilizada. Com efeito, não se nos afigura que um hotel de charme seja o equipamento que vai potenciar “estes recursos patrimoniais e culturais associados ao território (que) encerram um importante potencial a explorar para o desenvolvimento turístico da região, para a dinamização da base económica local e para a diversificação da economia regional, sendo ainda um importante contributo para a afirmação da identidade regional no exterior.” [11]. Não se nos afigura que a construção de um hotel de charme seja a forma mais moderna e economicamente viável de “valorizá-los, quer através da inovação nos produtos e nos processos de comercialização e marketing, quer através da criação de redes que, articulando territórios, recursos, produtos e equipamentos, permita ganhar massa crítica e favorecer economias de escala, potenciando novas oportunidades de negócio geradoras de emprego e rendimento e promovendo uma maior integração dos espaços sub-regionais.” [12]
Concluímos, citando uma vez mais o mesmo Programa Operacional do Centro 2007-2013, o documento de referência para o desenvolvimento estratégico nacional, ao reafirmar que “As prioridades estratégicas relativas ao território devem, assim, incidir, por um lado, na preservação e valorização dos recursos existentes e, por outro lado, no reforço da integração e da identidade da região, como factores críticos do seu desenvolvimento.” [13]
Construir um hotel de charme no Mosteiro de Alcobaça responde a estes desafios estratégicos? Claramente que não. Construir um hotel de charme no Mosteiro de Alcobaça compromete de modo irreversível o futuro da abadia e tem como consequência imediata a destruição irreversível do seu valor-memória precisamente como (i) “uma obra-prima do génio criador humano e (iv) exemplo excepcional de um tipo de construção ou de conjunto arquitectónico ou tecnológico ou de paisagem ilustrando um ou vários períodos significativos da história humana.”
Construir um hotel de charme no Mosteiro de Alcobaça é privar o universo dos cidadãos da fruição de um dos mais belos mosteiros cistercienses europeus. E para nós, Portugueses, é privar-nos de um dos mais importantes fragmentos da nossa identidade como nação independente.
Que futuro, então, para o Mosteiro de Alcobaça: uma proposta
“O Mosteiro não é um equipamento do concelho nem tão pouco um equipamento do Oeste. O Mosteiro é um equipamento nacional e o arco espiritual/cultural deverá ser entendido como um dispositivo cultural de Portugal e da Europa... ou até mesmo uma pertença de toda a Humanidade.” [14]
O mosteiro, comunidade monástica
Como já referimos, a revitalização do Mosteiro de Alcobaça para a sua missão original apresenta-se hoje como perfeitamente viável, sendo o Claustro do Cardeal o espaço preferencial para a instalação da comunidade monástica, em virtude da sua localização anexa ao corpo medieval e relativamente ao qual conserva várias opções para restabelecimento da comunicação com a Igreja, obrigatória para o Oficio Divino.
Originariamente projectado como Dormitório, este corpo conserva a sua estrutura primitiva significativamente conservada, apresentando algumas modificações funcionais que, em nossa opinião, não só não prejudicam esta nova funcionalidade, mais complexa, como a facilitam: referimo-nos a instalações sanitárias e infra-estruturas de saneamento, aquecimento e iluminação; cozinhas e espaços amplos de trabalho; oficinas ou espaços a elas facilmente convertíveis.
A sua separação funcional do Claustro do Rachadoiro não constitui problema, podendo ser equacionada segundo vários modelos, em função do Programa institucional que venha a ser definido para a Abadia. A Cerca, conservando também praticamente intactas todas as suas potencialidades de utilização, é mais um elemento a considerar no conjunto dos requisitos obrigatórios.
Um mosteiro vivo é sempre um mosteiro inteiramente diferente e constantemente “renovado”. São vários os exemplos conhecidos um pouco por toda a Europa, mas, pela qualidade e pelo paralelismo das soluções programáticas, destacamos a Abadia de Notre-Dame d’Orval, na Bélgica.
O Primeiro-Ministro Eng. António Guterres num acto de grande coragem política decidiu, de acordo com o Governo de então, devolver a Abadia de Tibães à Vida Monástica afectando-lhe uma «área reservada ou de clausura» da velha Abadia e outras instalações modernas adaptadas às novas realidades da vida Contemplativa/Religiosa. Em conclusão a decisão supra mencionada só poderia ter acontecido com um homem de Estado, um homem de cultura e um homem plural num País onde as fricções ideológicas e a liberdade religiosa ainda não são acolhidas por todos em plano de igualdade.
Não temos dúvidas que aberto o precedente na Abadia de Tibães, o Mosteiro de Alcobaça é aquele que reúne as melhores condições para o regresso dos Monges Cistercienses ao seu Mosteiro.
O presente e o futuro são bem mais simples que o peso da religiosidade popular do passado. Hoje uma comunidade Monástica pós-Concílio Vaticano II pode ter 10 a 12 monges com o seu Abade. Todavia não apresentamos uma proposta fechada, mas tão somente uma sugestão para ajudar a repensar o futuro do Mosteiro de Alcobaça no seu todo arquitectónico.
O Mosteiro, hospedaria de peregrinação
Todas as abadias têm o dever de hospedagem e assistência, sendo, para tal, dotadas de uma hospedaria-enfermaria.
Se é verdade que “não é possível retomar a existência, a organização e as funções que as ordens religiosas tiveram em Portugal e na Europa, mas continua a ser necessário responder à mesma necessidade de configuração a que, na sua época histórica, estas instituições de base espiritual souberam responder” [15], quem melhor do que a comunidade monástica residente para cumprir este desiderato, fazendo do Mosteiro de Alcobaça aquele lugar de descanso e pernoita, onde todo o peregrino busca revitalização e alimento espiritual?
Uma hospedaria, dependência monástica ou “explorada” pela comunidade monástica, surge, assim, como uma segunda componente estruturante do programa para o Mosteiro. E não duvidamos do seu potencial de atracção num projecto configurante regido pela dimensão religiosa-espiritual do eixo Alcobaça-Fátima-Tomar, já hoje determinante. Podemos mesmo afirmar que, se esta hospedaria já existisse hoje, a sua taxa de ocupação seria significativa, quer junto dos “peregrinos de Fátima”, nacionais e estrangeiros, que durante todo o ano incluem o mosteiro no seu roteiro de peregrinação, quer junto de organizações de juventude, também nacionais e estrangeiras, quer junto de estudantes e investigadores de diferentes áreas do conhecimento que estudam Cister, quer junto do turista-peregrino.
A existência de uma comunidade residente permitiria uma outra valência que assume, hoje, um papel cada vez mais importante na vida de todo aquele que, simplesmente, procura fugir ao stress: a paz de um “retiro espiritual” .
O Mosteiro, Museu
O eixo Alcobaça-Tomar é o eixo configurante da fronteira sul no quadro da primeira consolidação daquele que vai ser o reino de Portugal, sendo, nesse contexto, peça estratégica fundamental a entrega da sua defesa, povoamento e cristianização à Ordem de Cister e à Ordem do Templo.
O papel que estas duas Ordens desempenharam na constituição da nacionalidade portuguesa não pode nem deve ser esquecido quando se pensa num programa para o Mosteiro de Alcobaça, ainda mais em associação estratégica com o Convento de Cristo. Com efeito, não existindo em Portugal nenhuma entidade museológica tendo como missão específica a formação dos cidadãos nos valores da identidade nacional configurada pelos seus fundadores, o mosteiro de Alcobaça, tendo sido produtor desses conteúdos, deve assumir como sua essa missão.
Um Museu do Mosteiro de Alcobaça e da Ordem de Cister em Portugal é, em nosso entender, uma componente obrigatória de qualquer Programa que venha a ser definido. Este, que propomos, deverá ser um MUSEU NACIONAL, em que Cister e Portugal se articulam verdadeiramente na teia de relações à escala europeia que definiram os fundamentos da construção desta mesma identidade que é, hoje, a nossa, num processo que se iniciou no século VIII, com Carlos Magno, e que Bernardo de Claraval, de algum modo, fechou, no século XII.
Um Museu do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, cuja localização no eixo Alcobaça-Fátima-Tomar transforma naturalmente num núcleo material e imaterial desta complexa realidade, que tem na invocação Mariana uma segunda matriz. Porque a dedicação a Santa Maria é, de facto, mais do que uma identidade cisterciense. É também, e sobretudo, europeia e universalmente cristã. É Maria Theotokos, que o Papa Inocêncio II consagra Rainha dos Céus.
O Mosteiro de Alcobaça, peça fundamental no xadrez político e diplomático que fez de Portugal o País mais antigo da Europa, reúne todas as condições para ser esse museu, em complementaridade com o Convento de Cristo, a outra peça que lhe corresponde na componente militar. E, fundamentalmente, porque uma e outra Ordem são apenas os dois braços da mesma milícia cristã bernardina.
O Mosteiro da Batalha, o ex-voto de graças pela primeira grande vitória sobre a ameaça da perda dessa independência, está estrategicamente colocado a meio caminho. A sua história articula-se com Alcobaça-Aljubarrota e com Porto de Mós – S. Jorge. Alcobaça foi uma peça também desse xadrez. Esta história não é a história dos Coutos de Alcobaça. É uma outra História. É a História de Portugal. E esta, confunde-se com a do Mosteiro de Alcobaça e com a da Ordem de Cister, até 1833, nos bons e nos maus momentos. E é bom que não a esqueçamos. Porque é ela que nos identifica!
O Mosteiro de Alcobaça, Centro Europeu de Estudos Cistercienses
Como seria natural, este museu não se confina programaticamente à região centro, nem a Portugal, nem à Hispânia. Este museu projecta a história de Portugal na história da Europa em construção e, nesse sentido, o Programa para o Mosteiro de Alcobaça deve incluir a valência de um Centro de Estudos Cistercienses, área cada vez mais atractiva da investigação científica, transversal a praticamente todos os ramos do saber.
Um Centro de Estudos Cistercienses introduz a necessária mudança de paradigma por todos recomendada, ao projectar e integrar efectivamente Alcobaça no contexto do espaço integrado europeu. São vários os projectos multinacionais que contam com parcerias das universidades portuguesas, para cujo desenvolvimento seria muito interessante e atractiva a existência de uma sede chamada “mosteiro de Alcobaça”.
Os Fundos do Mosteiro de Alcobaça são de valor inestimável e a simples possibilidade de o seu acesso poder estar disponível no local onde foram produzidos e onde a informação neles contida pode materialmente ser verificada são, entre outras, hipóteses que justificam as melhores expectativas para um investimento desta natureza. Naturalmente que não nos referimos a uma disponibilidade física presencial, mas, até por isso, este Centro, ao suscitar um investimento permanente em investigação na área das TIC, seria um “projecto configurante” extraordinariamente valioso e que poderia, talvez definitivamente, “resolver” as indecisões dos vários Governos de Lisboa relativamente ao o Ensino Superior na Cidade de Alcobaça.
O Mosteiro, Centro de Artes Monásticas
As opções programáticas anteriores, e designadamente o Centro de Estudos Cistercienses, abrem-nos caminho para a criação de um Centro de Artes Monásticas, dedicado ao estudo, produção artística, conservação e restauro e divulgação das Artes e Ofícios cistercienses. Artisticamente, o Mosteiro de Alcobaça identifica-se pelo seu Scriptorium e pela sua Escultura em barro policromado. Os materiais cerâmicos de revestimento, o vitral, a Escultura em madeira, embora menos conhecidos, merecem igualmente especial atenção.
A criação de escolas-oficina dedicadas ao estudo destas artes monásticas, desde o processo produtivo à divulgação, contem em si mesma um extraordinário potencial de oportunidades de conhecimento e de desenvolvimento de actividades de ID, geradoras de sinergias várias, com potencialidades atractivas capazes de ultrapassar o mundo universitário, alcançando as empresas. São, aliás, já vários os projectos internacionais dedicados a algumas destas actividades, sendo talvez o mais relevante o projecto Enluminures, do qual é parceira a Universidade Nova. Uma escola-oficina de Iluminura no Mosteiro de Alcobaça seria, com certeza, um investimento muito atractivo nas áreas das indústrias culturais.
Por outro lado, são igualmente actividades com sustentabilidade interna, enquanto fornecedoras de recursos necessários ao próprio mosteiro, como é o caso dos materiais cerâmicos de revestimento: neste caso, a criação de uma escola-oficina dedicada ao estudo e produção artística dos ladrilhos de Alcobaça oferece-nos a possibilidade objectiva de voltar a ter o Deambulatório repavimentado com os fac-simile dos seus extraordinários ladrilhos.
Como, aliás, dos demais espaços.
CONCLUSÃO
É este um Programa financeiramente lucrativo? Haverá que avaliá-lo seriamente, em condições de igualdade com outras propostas objectivas, que tenham em devida conta o custo-benefício da perda do valor de uso versus sustentabilidade e preservação do valor intrínseco.
Não cabe ao Mosteiro garantir o futuro de Alcobaça. Mas é responsabilidade inalienável do País e de Alcobaça assegurar o futuro do Mosteiro, preservando-o para as gerações futuras.
Alcobaça, 8 de Setembro de 2008
Paulo Bernardino
Etiquetas: Artigos e entrevistas, Divulgação, História de Cós, Mosteiro de Cós, Ordem de Cister, Projectos e Ideias
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